O legado da Lei da SAF
O legado da Lei da SAF: a recuperação judicial de clubes como instrumento de pilhagem de credores. Parte 1
Só os profetas enxergam o óbvio, uma vez declarou Nelson Rodrigues.
Confesso, que não fui profeta. Eufórico, até poucos meses, havia comprado a ideia da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) como a saída do futebol brasileiro. Acreditava mesmo que uma lei que impusesse a transformação societária, saindo do amadorismo para uma gestão profissional, poderia o ponto de partida sanear, ética e financeiramente, essas associações, dando condições de concorrer com os grandes clubes e ligas europeias.
Engano meu. O que foi vendido como a solução pode estar se transformando no maior instrumento de calote do futebol. Mesmo um dos idealizadores da lei, o excelente advogado José Francisco C. Manssur, vem usando sua doutrina para advertir do uso desvirtuado de um regulamento que foi criado visando o bem.
A pretensão do uso e abuso do expediente da recuperação judicial para se verem livres de dívidas antigas em detrimento ao direito dos legítimos credores, clubes estariam autorizados a manter a velha e conhecida gestão, marcada pela desorganização, decisões equivocadas ou por interesse próprio mesmo.
Dívidas estas, quase que na maior parte, fruto de gestão irresponsável e descompromissada. Pior, utilizando um expediente poderoso como a recuperação judicial, sem atentar para suas imprevisíveis e gravíssimas consequências: uma delas, a falência e a responsabilização pessoal de dirigentes, administradores e conselheiros.
Para se ter uma ideia do estrago, há notícia de futuras propostas de planos de recuperação judicial, a serem empurrados em assembleia geral com votos de suspeitos credores, para serem pagos em 10 (dez) anos e com deságio variando de 60%, 75% e até 90% do valor da dívida dos credores. E, por se tratar de novação, sem opção ao credor aguardar o fim para receber integralmente.
Para os credores – em sua maioria ex-funcionários, ex-atletas, torcedores em auxilio do clube do coração e empresas prestadoras de serviços – será o autêntico Cavalo de Tróia, empurrado por dirigentes que pretendem se aproveitar da sua boa-fé.
Um conhecido meu, colega advogado, daqueles torcedores fanáticos, enquanto esclareço a indignação, me interrompe, em tom de crítica, sob o pretexto de que “se está na lei, não é ilícito. Entendo que é a literalidade da norma o que importa. Se lei permite, é do jogo. Bola pra frente”.
O colega não poderia ser mais infeliz.
Só se transforma em norma o texto legal que recebe interpretação; antes disso, não passa de enunciado. E toda lei está sujeita a ser interpretada, não tendo efeito jurídico sem o trabalho hermenêutico.
Hoje a referida interpretação literal, ainda que necessária e ponto de partida do esforço, não caminha sozinha. Superada como fonte independente, é na interpretação finalística e na sistemática que melhor se atenderá aos fins sociais que se busca.
E porque o óbvio às vezes tem que ser dito, há que se lembrar do artigo 187 do Código Civil, onde também constitui ato ilícito o exercício desviado de um direito conferido por lei.
O que quero dizer é que a lei, em si, não é ruim. É sua má utilização e a interpretação de conveniência que vem sendo oferecida que deve ser combatida.
A rota, portanto, merece correção. E o primeiro passo é identificar e conhecer os aspectos problemáticos que serão enfrentados pelos Tribunais, pelo Ministério Público e, em especial, pelos credores ao longo dessa dura jornada para receber o que é seu por direito.
Nessa primeira etapa, analisa-se o sujeito ativo da recuperação.
Quais clubes têm direito à recuperação judicial?
Pela Lei 14.193/21, compõe o seu capítulo I, “Da Sociedade Anônima Do Futebol”, a Seção V destinada ao “Modo de Quitação das Obrigações”. Seu artigo 13 autoriza ao clube ou à pessoa jurídica original pedir recuperação judicial com o fim de quitar as obrigações dos seus credores.
Ali, quando trata de “clube ou pessoa jurídica original”, identifica a associação civil de natureza esportiva (clube) ou a sociedade empresária (pessoa jurídica), nominando como original, como referência direta à condição de preexistência de Sociedade Anônima resultante.
Logo, estando no capítulo especifico da lei que trata sobre a Sociedade Anônima do Futebol, consequentemente ao modo de quitação das suas obrigações, em interpretação literal mesmo, implica legitimidade para pedir a recuperação judicial apenas do clube optante da SAF.
Há quem defenda que os clubes não optantes da SAF poderiam utilizar da recuperação judicial. O argumento parte de recentes precedentes, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, que vem autorizando associações civis a utilizarem o instituto com base em uma extensiva interpretação da Lei 11.101/2005 que a defere apenas a sociedades empresariais (LFR).
Não é o caso de associações de futebol.
Se a tese daqueles precedentes autoriza associações civis de fundo econômico a utilizarem o instituto da recuperação judicial da LFR, a partir de 6 de agosto de 2021, data da publicação da Lei da SAF, as associações civis de futebol tiveram restringido seu acesso à recuperação judicial sem antes transformarem-se, ou cindirem seu departamento de futebol para criar uma Sociedade Anônima de Futebol.
Tanto é assim que o pagamento do plano da recuperação será implementado através das receitas geradas pela SAF, ou seja 20% das receitas correntes mensais e 50% dos dividendos, juros ou qualquer outra remuneração gerada pela SAF, conforme determina o artigo 10.
A lei especial pretendeu criar um incentivo para às associações esportivas se transformarem em sociedades anônimas. Foi alimentada pela visão – acertada, porque já comprovada pela experiência em outros países – de que é esta a forma societária a impor gestão profissional suficiente a viabilizar economicamente o futebol, trazendo investidores, substituindo torcedores por profissionais, com o fim de afastar a miséria e a corrupção que se convive nos clubes brasileiros. A lei não deu o peixe, preferindo lhe presentear com a vara.
Está claro na finalidade da norma, que ela não conferiu autorização indiscriminada, com alguns acreditam. Não, o efeito imediato foi o oposto, justamente para restringir aos clubes optantes desse novo modelo societário a autorização do uso da recuperação judicial.
Dela, decorre um silogismo em que a premissa é a de que, se não existe a SAF, inexistem duas das essenciais fontes de receitas; sem estas fontes de receitas, a recuperação judicial se esgota.
Então, ao impor a criação de uma SAF ao clube que pretende se beneficiar com uma recuperação, a Lei 14.192/21 criou uma condição específica para as associações de futebol, que não existe na Lei de Recuperação e Falências.
É do princípio da especialidade das normas, em que a norma especial prevalece sobre a geral, na medida que rege situações específicas não alcançadas pela lei mais ampla.
Quanto aos poucos precedentes, trazidos em cognição mais estreita, mas que alguns clubes levantam como bandeira para defender o uso indiscriminado do instituto da recuperação judicial, é seguro que chegarão às Cortes Superiores, onde certamente terão seus cursos corrigidos.
Henrique Richter Caron é advogado em Curitiba, sócio do escritório Mafuz Abrão, Ribeiro & Caron Advogados e especializado em Direito do Esporte.
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