Litígios de contratos desportivos de natureza cível: Competência da justiça comum ou da CNRD?
Quando falamos em contratos desportivos, muito se vem à mente as relações trabalhistas que envolvem profissionais (atletas, treinadores, auxiliares de comissão técnica) e entidades de prática esportiva empregadoras. Causas atinentes ao descumprimento de obrigações laborais e de contratos coligados, como o de cessão de direito de imagem, são atraídas pela competência referida no artigo 114, incisos I e IX, da Constituição Federal, e solucionadas pela Justiça Especializada do Trabalho.
No entanto, há uma gama infinita de questões de natureza desportiva, como litígios entre clubes na partilha de direitos econômicos sobre o vínculo de atletas e indenização por formação ou mecanismo de solidariedade FIFA ou entre clubes e agentes pela prestação de serviço de intermediação na contratação de atletas, que não derivam de relação de emprego.
Sendo estas questões eminentemente cíveis e reguladas por instrumentos particulares, seus entes envolvidos, participantes do cenário esportivo nacional e sob jurisdição da Confederação Brasileira de Futebol, em regra, na cláusula contratual de foro, elegem a Justiça Comum Estadual ou a Câmara Nacional de Resolução de Disputas, que funciona junto à CBF, para dirimir eventuais litígios.
Ainda que alguns contratos restrinjam o foro de eleição ao procedimento administrativo na CNRD, o prazo de dois anos definido no regulamento do órgão para sua instauração, a contar da data em que se consumou a infração ou o descumprimento de obrigação, não pode excluir o direito da parte lesada de acionar o Poder Judiciário após decorridos aqueles dois anos.
Diz-se isso porque se as regras de direito civil estendem a um prazo de cinco anos a prescrição para a pretensão de cobrança de dívidas líquidas (art. 206, §5º, I, CCB), não pode o titular do crédito, por uma circunstância ou outra que o levou a não requerer a abertura do procedimento da CNRD, ter limitado o direito constitucional de ação.
Não raro, há hipóteses em que os contratantes convencionam na cláusula específica a adoção do procedimento da Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF, ressalvando, contudo, em nome do princípio da inafastabilidade da jurisdição, a eleição do foro da Justiça Comum onde a obrigação (sede da pessoa jurídica) deveria ser implementada.
Em caso recente que envolveu tradicionais agremiações do futebol brasileiro, discutiu-se a competência do Poder Judiciário a que foi submetido o litígio. O clube demandado sustentava a prevalência de cláusula compromissória de pacto arbitral, ignorando que a cláusula de foro oferecia à parte a alternativa entre propor um mero requerimento na CNRD, diga-se, sem natureza de arbitragem, ou ajuizar ação perante a Justiça Comum, de sorte não haver dúvida de que esta última era uma das opções que lhe facultava o contrato.
De toda sorte, posicionamo-nos no sentido de que a Câmara Nacional de Resolução de Disputas não é Corte Arbitral. É órgão procedimental da Confederação Brasileira de Futebol, administrativo por excelência e sem caráter de arbitragem. Ali não se escolhem árbitros ou mediadores, submetendo-se às partes a pessoas de escolha da própria CBF. Não há caráter jurisdicional: suas decisões sequer têm natureza condenatória, onde a única sanção é de natureza desportiva (aplicação dos estatutos e regulamentos da CBF e FIFA, suspensões, impedimento administrativo para registros e transferências de atletas).
E se o regulamento da CNRD exige a abertura de procedimento em dois anos, por si só já colidiria com a disposição da Lei nº 9.307/96, que não estabelece prazo prescricional para a pretensão de instituição de arbitragem, pois, em regra, o direito de provocar a instalação do juízo arbitral pode ser exercido a qualquer tempo.
Assim, ante à possibilidade de se impor grave prejuízo a quem se vê em situação de ameaça, evidentemente não pode haver privação ao acesso à justiça, sobretudo quando, pela particularidade do contexto da causa, somente o Poder Judiciário é que detém mecanismos para, provocado, garantir por provimento cautelar ou tutela de urgência resultado pleno e imediato para o caso concreto de pretensão resistida.
O Tribunal de Justiça do Paraná, então, em julgamento colegiado e em resposta à arguição de incompetência, bem concluiu que “A própria redação da cláusula evidencia o desinteresse das partes em afastar a competência do Poder Judiciário para dirimir as questões atinentes a tal contrato. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional corresponde a direito fundamental que só pode ser relegado diante de parâmetros estritos, evitando-se a sua supressão (Teoria da Ponderação dos Direitos Fundamentais). A redação empregada, por si só, já demonstra que, na espécie, a relativização deste direito dar-se-ia, tão somente, diante de expressa manifestação, pelas partes, do desejo de se utilizarem, preliminarmente, de outro órgão de resolução de disputas. Além disso, consultando o próprio regulamento da Câmara Nacional de Resolução de Disputas da Confederação Brasileira de Futebol, é possível compreender que a sua atuação não tem o condão de afastar a jurisdição das soluções dos conflitos a ela direcionados. Por definição, portanto, não se trata de câmara arbitral, mas, sim, de um simples meio particular de resolução de conflitos que pode ser escolhido pelas partes, de comum acordo”. (TJPR – Recurso nº 0023880-34.2022.8.16.0000 – 1ª Câmara Cível, Rel. Juiz Convocado Everton Luiz Penter Correa, julg. 11/10/2022).
Consideramos que, a fim de evitar a subversão da ordem jurídica, deve o intérprete sempre interpretar a lei à luz da Constituição e não o contrário. O ordenamento jurídico é um sistema de normas (regras ou princípios) que se relacionam de uma forma hierarquizada, coerente e completo, e capaz de superar as lacunas e antinomias das normas.
Dr. Marcelo Ribeiro, sócio da MRC Advogados.
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