A Lei Geral do Esporte e o poder conferido a FIFA e CBF
A recentíssima Lei 14.597/2023, já titulada como Lei Geral do Esporte, é o último dos atos legislativos, de um ciclo de alterações normativas, cuja promessa é de atualização, mas mais assemelhada a uma delegação de poder a entidades privadas de administração esportiva.
Publicada há poucos dias, em 14 de junho de 2023, a Lei 14.597 promoveu a revogação de leis de regência até então, como a Lei 8.650/93 (Lei do Treinador de Futebol), a Lei 10.671/03 (Estatuto do Torcedor), a Lei do Bola-Atleta (Lei 10.891/04) e a Lei do Árbitro Profissional de Futebol), bem como derroga (revogação parcial) tacitamente a quase totalidade dos dispositivos da histórica Lei 9.615/98 (Lei Pelé), dentre outras.
Essa Lei Geral do Esporte, inaugurando novo marco regulatório, prometia uma modernização das estruturas do esporte nacional, atualizando preceitos, conceitos e práticas, bem como inovando ao trazer novos institutos, a fim de elevar o esporte ao patamar das nações mais desenvolvidas.
Não é bem assim. Publicada a lei, a euforia inicial foi tomada pela insegurança. Pelo menos no que toca a relação de trabalho e transferência no futebol, essa novíssima Lei Geral do Esporte parece saída do forno das confederações esportivas.
Embora a frustração dos clubes pelos freios impostos pelo Senado e pelos vetos do Presidente da República, basta uma leitura da nova lei para perceber a enormidade de poder que foi conferido a entidades dirigentes no esporte, que tem como exemplo máxima no Brasil a CBF e internacionalmente, a FIFA.
Leia o artigo 26. Nele, ao tratar da autonomia esportiva, reservou espaço para reconhecer a necessidade de integridade e harmonia para o sistema normativo transnacional chamado de Lex Sportiva, conceituada no §1º como
“sistema privado transnacional autônomo composto de organizações esportivas, suas normas e regras e dos órgãos de resolução de controvérsias, incluídos seus tribunais”.
O §2º do mesmo artigo 26 – em aparente repetição da redação do agora antigo §1º do artigo 1º da Lei Pelé – prevê que
“o esporte de alto rendimento é regulado por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática esportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas organizações nacionais de administração e regulação do esporte”.
O parágrafo único do artigo 94, em referência a “direitos econômicos” – resultado ou proveito econômico decorrente de uma transferência de atleta entre empregadores ou de pagamento da cláusula indenizatória ou compensatória -, delega competência legislativa para a matéria a favor de entidades privadas estrangeiras, como a FIFA:
Parágrafo único. A cessão ou a negociação de direitos econômicos dos atletas submetem-se às regras e aos regulamentos próprios de cada organização de administração esportiva e à legislação internacional das federações internacionais esportivas.
Em violação ao princípio fundamental da livre inciativa e ao direito constitucional de propriedade, renuncia à competência privativa ao transferi-la para entidades dirigentes, que regularão a validade de aquisição, cessão e exercício desse direito de crédito.
No artigo 95, que regula a profissão de “agente esportivo” está outra amostra do poder que as organizações de administração esportivas, como CBF e FIFA, todas entidades privadas, aparentemente passaram a ter no Ordenamento Nacional, como a própria regulação de carreira profissional, na expressão dos §§2º e 3º:
§2º A atuação de intermediação, de representação e de agenciamento esportivo submete-se às regras e aos regulamentos próprios de cada organização de administração esportiva e à legislação internacional das federações internacionais esportivas.
§3º A organização de administração do esporte da respectiva modalidade fiscalizará o exercício da profissão de agente esportivo, de modo a coibir a prática de suas funções por pessoas não autorizadas por esta Lei, e informará à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda todos os valores envolvidos e pagos na cessão e na transferência dos atletas.
Esse é outro exemplo de renúncia de competência de o estado legislar em matéria sensível. A lei nova deixa ao arbítrio exclusivo, por exemplo, em favor da FIFA, a regulação da profissão de “agente”. Aqui, tem-se violação objetiva do inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, onde
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
Não é só. No inciso II do mesmo artigo 5º oferta-se pedra fundamental do Estado Democrático de Direito, estampado no princípio da legalidade como limitador do poder estatal sobre o indivíduo:
II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
A redação dos incisos II e XIII do artigo 5º da Lei Maior estão condicionadas ao conceito de lei; um limitando o poder do Estado sobre suas liberdades, o outro, mais específico à liberdade profissional.
Os dispositivos, por se tratar de direitos fundamentais, tem interpretação restritiva quando em desfavor do cidadão. Isso quer dizer que, a liberdade, seja sobre o exercício do direito de propriedade, seja sobre o de trabalho, só pode ser mitigada mediante lei formal.
E a Lei Geral do Esporte, ao dar a aparência de abdicar dessa regulação, delegando-a para entidades privadas, inclusive estrangeiras, por meio de mera remessa de competência, não atende a exigência constitucional. Pelo contrário, permitir que entidades privadas legislem sobre direitos fundamentais, como liberdade, propriedade e trabalho, esfacela a própria essência da Carta Maior.
Não parece exagero concluir que a nova lei oferece condições para que as relações jurídicas civis e laborais sejam dependentes da conveniência e contingências de entidades privadas, a exemplo de CBF e FIFA.
Bem por isso, a nova lei incomoda. Quanto transfere a competência estatal de normatizar relações jurídicas, mitiga-se o próprio conceito de lei e reduz soberania nacional em prol de interesses não necessariamente internos, nem coletivos, reservado à vontade de dirigentes.
Tem mais. A lei nova parece não tratar, mas não significa que o intérprete de conveniência não convença a adoção compulsória da jurisdição privada, mediante mera alteração regulamentar para que todo litígio seja julgado por órgãos e tribunais dessas organizações esportivas, limitando ou mesmo impedindo o direito de acesso ao Judiciário.
Nada obsta, em tese, que cláusulas de contratos especiais de trabalho esportivo contenham cláusulas adesivas de aceitação compulsória à jurisdição privada dessas organizações, reduzindo o direito de ação e acesso à jurisdição. Para isso, por exemplo, basta inserir em contratos-padrão – estes de obrigatoriedade registral perante essas organizações, como CBF, pena de negar-se condição de jogo – cláusula restringindo o direito de ação a ser exercido apenas e tão somente perante seus próprios órgãos e tribunais, como a Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF ou o Tribunal do Futebol da FIFA.
Por tudo isso é que a nova lei, ao autorizar que relações jurídicas fiquem subordinadas, daí possam a qualquer momento terem as regras alteradas à pura vontade de entidades privadas, é derramar insegurança sobre um mercado já saturado pelo abuso.
Mais que isso, abdicar de competência legislativa em prol de entidades privadas, até internacionais, é fragilizar fundamento elementar da República Federativa do Brasil, que está na soberania e no império da lei, declarada no artigo 1º da Constituição Federal.
Nunca é demais acessar às clássicas lições de Darcy Azambuja, mais ainda no que trata de soberania:
“Tomada em sua acepção exata, diz Carré de Malberg, a soberania designa não o poder, mas uma qualidade do poder do Estado. A soberania é o grau supremo que esse poder pode atingir, supremo no sentido de não reconhecer outro poder juridicamente superior a ele, nem igual a ele dentro do mesmo Estado.
Quando se diz que o Estado é soberano, deve entender-se que, na esfera da sua autoridade, na competência que é chamado a exercer para realizar sua finalidade, que é o bem público, ele representa um poder que não depende de nenhum outro poder, nem é igualado por nenhum outro dentro do seu território. Assim, quando o Estado traça normas para regular as relações dos indivíduos que lhe estão sujeitos, sobre o comércio, a indústria etc., exerce o poder de modo soberano. As regras que edita são coativamente impostas, sem que nenhum outro poder ou autoridade interfira ou se oponha.”
(AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. 4ª edição. São Paulo: Editora Globo, 2008, pp. 68-69)
Daí porque a crítica. Há algo de inusitado na lei. Autonomia esportiva não é o mesmo que soberania esportiva. O artigo 217, inciso I, da Constituição Federal limita o poder estatal sobre essas entidades dirigentes e clubes, quanto a sua organização e funcionamento, mas não abdica da competência elementar de regular contratos civis de cessão de direitos ou créditos, contratos de trabalho, o livre exercício profissional e direito ao pleno acesso à Justiça Estatal.
E o só fato de que o conteúdo material dos referidos regulamentos privados está vinculado a direitos fundamentais, abrangendo disciplinas jurídicas expressamente destinadas à normatização estatal, já torna duvidosa sua constitucionalidade em conta do que prevê o artigo 22, relativa à competência legislativa privativa da União, pelos incisos I e XVI da Constituição:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
(…)
XVI – organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões;
(…)
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.”
Alexandre de Moraes, jurista e ministro do Supremo Tribunal Federal, em sua obra “Constituição do Brasil Comentada e Legislação Constitucional” (8ª ed. São Paul: Atlas, 2011, pg. 617):
“A Constituição Federal prevê nos 29 incisos do art. 22 as matérias de competência privativa da União, definindo preceitos declaratórios e autorizativos da competência geral na legislação federal e demonstrando clara supremacia em relação aos demais entes federativos, em virtude da relevância das disposições.
Anote-se que a característica de privatividade permite a delegação, de acordo com as regras do parágrafo único do citado artigo.”
Tem-se, portanto, que a Constituição confere competência privativa para a União, com disposição do Congresso Nacional, para legislar sobre direito civil, empresarial, trabalhista, condições para o exercício de profissões e inclusive direito de ação. A exceção só permite delegação, nessas matérias, aos Estados, não a entidades privadas nacionais e internacionais.
Logo, a incursão que fez a Lei Geral do Esporte do modo como foi incluída ofende princípios elementares, então comprometendo sua validade e eficácia.
Não obstante seja tudo muito novo, com debates iniciais, a lei nova já merece escrutínio geral. Não poucas vezes será desafiada, exigindo do Judiciário resposta certa, célere e efetiva. Em especial, quanto a (in)constitucionalidade desses temas tão sensíveis e que tanta insegurança está carregando para as relações no esporte.
Dr. Henrique Richter Caron é advogado em Curitiba, sócio do escritório Mafuz Abrão, Ribeiro & Caron Advogados e especializado em Direito do Esporte.
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